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A imprensa e a revolução



Com mais de 40 anos de censura, os jornais portugueses não podiam ser um espelho da sociedade onde estavam inseridos, eram jornais castrados. A mordaça do poder criava, só por si, uma autocrítica sobre o que poderia ou não ficar escrito na imprensa. Por isso, com a chegada da revolução a 25 de abril surgiu a libertação que há muito tempo se pedia e, com isso, os jornais passaram a fazer parte do processo revolucionário, naquilo que foi o seu melhor e o seu pior. Foram, como referia Arthur Miller, “uma sociedade a falar com ela própria” num tempo bastante conturbado e com um país num estado de ebulição política.

 

 

No antigo regime, a imprensa escrita, nomeadamente os jornais, estavam sujeitos a um regime de censura prévia, o que significava que as publicações só poderiam sair para a rua depois de visadas pela comissão de censura.

Este regime vigorou ao longo de todo o Estado Novo, tendo sido publicado logo em 1933, através do Decreto-Lei n.º 22469, de 11 de abril. Aqui se revela que “continuam sujeitas a censura prévia as publicações periódicas definidas na lei de imprensa”, e se define que “a censura terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”[i].

Apesar da morte de Oliveira Salazar em 1970, o seu sucessor não tinha quaisquer intensões de alterar o regime de censura existente. “Marcello Caetano, serodiamente chegado ao cargo de Presidente do Conselho, quase elevou a censura à categoria de instituição consuetudinária ao justificar a necessidade da sua manutenção em Portugal porque «nem jornalistas, nem empresas editoriais, nem governo nem o público, estão preparados para o regime de responsabilidade, perante os tribunais»”[ii], sublinha José Filipe Pinto.

 

A censura à imprensa

 

Em outubro de 1969, Marcello Caetano, numa entrevista ao Diário de Notícias, quando questionado sobre a razão pela qual a censura ainda não tinha sido abolida, respondeu que, “depois de quarenta anos de regime de censura, se impõe um período de transição, por meio de habituação progressiva do meio e da responsabilidade crescente, se vão preparando as pessoas para a liberdade de imprensa”, e acrescentava, “não basta falar num direito à informação: é preciso, a meu ver, garantir o direito à informação «verídica», pois de contrário o público estará a ser envenenado por falsidades, que nem sempre são de pronta e fácil correção. As meias-verdades, as meias frases, os factos distorcidos, tudo isso compõe um tecido de mentiras que perverte a opinião”[iii].

Após as eleições de 1969, um grupo de jovens deputados chega à Assembleia Nacional e na II Sessão Legislativa (1970/1971), Francisco Pinto Balsemão e Francisco Sá Carneiro apresentaram um projeto de Lei de Imprensa que acabou por ser rejeitado na generalidade, pelo que alguns deputados da chamada ‘Ala Liberal’ acabaram por não participar na discussão do diploma na especialidade. “Sá Carneiro denunciou na Assembleia Nacional que o seu discurso sobre a Lei de Imprensa tinha sido «quase totalmente suprimido» nalguns jornais. Com ironia afirmou: «não me sinto ofendido pelo facto, muito pelo contrário». Balsemão falou logo de seguida e queixou-se do mesmo”, sublinha Miguel Pinheiro[iv]. Nas suas memórias, Francisco Pinto Balsemão recorda que “eu decidi ir a combate. Apresentei dezenas de propostas de alteração ao texto de base que vinha da Comissão eventual (…) Estive praticamente só nesta luta e 99 por cento das minhas propostas de alteração foram chumbadas. Mas pude defender os meus pontos de vista e atacar os da maioria”[v].

Jaime Nogueira Pinto caracterizava a imprensa da época anterior à revolução desta forma: “apesar da existência de alguns profissionais competentes, o nível dos jornais portugueses era bastante medíocre, a linguagem pobre, os temas oscilando entre o caso do dia folhetinesco, a glosa laudatória das declarações oficiais ou a crítica enrodilhada e bem-pensante; o conteúdo era mau e a forma pior. (…) O próprio ofício de jornalista e a condição dos que o exerciam profissionalmente reforçavam essa situação”[vi]. José Pacheco Pereira atesta que “mais do que uma geração e uma esmagadora maioria de portugueses só conhecia os jornais «visados pela comissão de censura», e só uma pequena minoria alguma vez vira as folhas mal impressas, escondidas, dobradas, metidas em envelopes, dentro das folhas de um livro, em pacotes disfarçados de outra coisa, da imprensa clandestina”[vii].

No que respeita à forma como os jornais interagiam com a população antes da revolução, Bem Pimlott e Jean Seaton, defendem que “os jornais portugueses abasteciam uma elite comparativamente pequena, sobretudo urbana. Na verdade, a imprensa, ao contrário da radiodifusão, estava longe de ser um meio de comunicação de massas”[viii].

 

A revolução

 

É com este pano de fundo que se chega ao dia 25 de abril de 1974. Mário Mesquita assinala que “as medidas imediatas dos revolucionários de abril em relação à comunicação social consistiram, por um lado, na ocupação dos principais meios audiovisuais e, por outro lado, na abolição imediata da censura e exame prévio”[ix]. O escritor José Cardoso Pires refere mesmo que os censores, naquele dia “desataram a telefonar para os jornais. Reclamavam as provas dos textos das edições da tarde (…) julgavam-se instituição natural. Prolongáveis para lá do fascismo que se estava a extinguir”[x]. Contudo, embora o programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) referisse a abolição da censura e exame prévio, ele pretendia criar uma comissão ‘ad hoc’ para controlo da imprensa, de caráter transitório, diretamente dependente da Junta da Salvação Nacional, justificada na necessidade de “salvaguardar os segredos dos aspetos militares e evitar perturbações na opinião pública”.

Como em todas as revoluções, a sociedade transforma-se radicalmente e a imprensa irá acompanhar toda a dinâmica revolucionária que vai decorrer entre o 25 de abril e o 25 de novembro, momento em que a situação política e social se começa a estabilizar. Porém, o historiador espanhol Sánchez Cervelló, sublinha que “a revolução portuguesa teve duas características essenciais: a hegemonia militar e a subalternidade civil, à margem dos modelos políticos que para o futuro do país, projetavam uns e outros”[xi] e que se iria confrontar de forma acentuada na imprensa escrita, na rádio e na televisão.

Com a revolução e o fim da censura passa a existir um clima de euforia no povo e que se transferiu também para os jornais, tanto em Lisboa como no Porto. “Para além da recente aquisição da liberdade, o jornalismo passou a viver uma nova fase em que a politização dos conteúdos, as pressões sobre as redações e os níveis de conflitualidade, associados a uma desarticulação da estrutura das chefias editoriais decorrente da transformação e enfraquecimento das administrações constituíram a tónica”[xii], refere Helena Lima.

Um dos pontos a salientar logo após a revolução é o aumento da audiência dos meios de comunicação social, com os jornais mais importantes a produzirem grandes tiragens; o ‘Diário de Notícias’, o ‘Século’ e o ‘Diário de Lisboa’ somavam cerca de 180 mil exemplares por dia, em julho de 1975. Com a chegada da liberdade, os jornais que estavam proibidos pelo regime começam a chegar à luz do dia sem qualquer restrição, com destaque para o ‘Avante’ e o ‘Portugal Socialista’ que apenas se publicavam de forma clandestina.

Com a alteração de regime político “a luta pelo controlo das empresas jornalísticas desencadeou-se logo a partir de abril de 1974. Desde logo mudaram de direção jornais como o ‘Diário de Notícias’, o ‘Diário Popular’, ‘A Capital’, o ‘Comércio do Porto’ e a revista ‘Vida Mundial’”, menciona Mário Mesquita, acrescentando que “o «plenário de trabalhadores» transformou-se num órgão decisório de grande importância estratégica nas empresas jornalística, à semelhança do que sucedia noutros setores empresariais”[xiii]. Todavia, no sentido de regular os meios de comunicação social, o governo fez promulgar uma nova Lei de Imprensa, através do Decreto-lei n.º 85-C/75, de 26 de fevereiro, “não só para combater aquilo que era designado como a contrarrevolução, mas também para obstar aos excessos daqueles que confundiam liberdade com libertinagem”, refere José Filipe Pinto[xiv].

A ação dos jornais acabou por seguir o curso da revolução, e as posições políticas nestes órgãos de comunicação social começaram a extremar-se após o 11 de março de 1975, quando são feitas as nacionalizações. Assim, como uma parte significativa dos jornais era detida principalmente por instituições bancárias, aquando da nacionalização da banca, uma parte muito significativa dos jornais passa a ficar sob o poder do Estado. Com o país em ebulição, os jornais irão ser um ponto muito forte do combate político que então se travou nesse verão quente.

 

O caso ‘República’

 

O primeiro caso grave a surgir com implicações nos jornais é a situação vivida no jornal ‘República’, onde estala o conflito entre os tipógrafos e os jornalistas.

Fundado por António José de Almeida em 1911, o ‘República’ atravessa todo o Estado Novo e chega a abril de 1974, como um dos poucos jornais privados que não estava sob o controlo da banca, uma vez que, no início dos anos 70, um conjunto de dirigentes da Acção Socialista Portuguesa, passaram a ter a maioria do capital da empresa detentora do título. Raul Rego é o diretor do jornal quando chega a revolução e vai também integrar o I Governo Provisório, sendo em 1975 eleito para a Assembleia Constituinte. É com ele que o jornal vai conhecer e protagonizar um conflito que abalou o governo de então.

A 19 de maio de 1975, a Comissão Coordenadora dos Trabalhadores entende suspender o diretor e o chefe de redação, acusando-os de estarem ao serviço do PS e, por isso, transformarem o jornal num órgão daquele partido. De seguida as instalações do jornal são ocupadas pelos trabalhadores que comunicam aos jornalistas que quem quiser sair pode, mas já não regressa, e todos decidem ficar. Esta situação tem repercussões políticas imediatas no Conselho da Revolução que discute o assunto, e a 22 de maio, Mário Soares dá uma conferência de imprensa sobre o tema. “O líder socialista informou os jornalistas que enquanto não fosse encontrada uma solução para o caso ‘República’, os representantes do PS no Governo não participam em reuniões do Conselho de Ministros”, menciona o historiador David Castaño[xv].

“O conflito protagonizado pelo ‘República’ representa um microcosmo do Portugal da época, no plano seja das lutas, seja da argumentação das estratégias e das alianças. Mas constitui, também, um exemplo notável da importância da imprensa naquele período conturbado e de transformação”, refere João Figueira[xvi]. Aqui foi notória a tentativa de fazer do conflito uma luta de classes, onde os tipógrafos (o proletariado) enfrentavam os jornalistas (a burguesia) e que se saldou com o encerramento da publicação passado pouco tempo.

 

O caso ‘Diário de Notícias’

 

Aquando da chegada da revolução de abril, o jornal ‘Diário de Notícias’ era detido pela Caixa Geral de Depósitos, o que implicava que estava diretamente sob a alçada do governo. Era uma das mais antigas publicações do país, fundada em 1864 por Tomás Quintino Antunes, tendo contado com colaborações de Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Pinheiro Chagas. Em 1971, o diretor escolhido por Marcello Caetano foi Fernando Fragoso que, em nota de agradecimento ao Presidente do Conselho, refere, “pode vossa excelência contar com a minha dedicação de corresponder à distinção de que fui objeto”.

Com a revolução, o clima de tensão no interior do jornal vai agudizar-se, com os trabalhadores da empresa proprietária da publicação a reclamarem a saída dos quadros dirigentes que tinham sido claramente coniventes com o regime que tinha sido deposto, o que acaba por acontecer. Com o Estado a tentar controlar alguma imprensa, Luís de Barros é nomeado diretor do ‘Diário de Notícias’ em abril de 1975, tendo como diretor-adjunto José Saramago, ambos com fortes ligações ao Partido Comunista. Com estes homens à frente da publicação a orientação do jornal muda para uma defesa incondicional da via socialista segundo a ótica do PCP e instrumento ao serviço da revolução. No seu discurso de posse, Saramago “assumiu um condicionamento do jornalismo a praticar, «este jornal – que durante bastante tempo serviu a quem não deveria ter servido – não se pode, no futuro, limitar a ser uma folha de registo de ocorrências, mas há de tornar-se no veículo das informações de que o povo precisa. Quem não estiver empenhado neste projeto, é melhor abandonar o Diário de Notícias»”, menciona Joaquim Vieira[xvii].

Contestando a orientação então definida para o jornal, um grupo de 30 jornalistas decide fazer um comunicado de seis pontos, em agosto de 1975, onde referem, por exemplo o “desprezo que as cúpulas da Redação têm manifestado pelo Estatuto Editorial do ‘Diário de Notícias’. “Em suma, os 30 jornalistas tinham elaborado um documento que, contendo duras críticas às hierarquias superiores do jornal e ao conteúdo das suas páginas, era, todavia, pouco claro quando aquele que parece ser o ponto principal do descontentamento dos redatores: a orientação politico-ideológica do periódico”, frisa Pedro Marques Gomes[xviii].

Com a situação política ao rubro, é marcado um plenário de trabalhadores da empresa que acaba por propor o saneamento dos subscritores do documento, o que terá várias consequências políticas. Na Assembleia Constituinte o tema é discutido no plenário, com os deputados socialistas a criticarem fortemente a posição de saneamento dos jornalistas. A 28 de agosto de 1975, Arons de Carvalho, intervindo no ponto de antes da ordem do dia, faz uma longa crítica aos critérios noticiosos seguidos pelo DN, dando como exemplo alguns acontecimentos cobertos pelo jornal: «um rol de deturpações, mentiras e calúnias». Este caso “causou indignação na opinião pública e embaraços ao PCP, tanto no plano nacional, como a nível das relações externas”, refere Mário Mesquita[xix].

 

25 de novembro

 

Com a clarificação que o dia 25 de novembro de 1975 acabou por trazer do ponto de vista político, o PCP perde influência e no governo e nos demais órgãos de decisão, o que implicou a saída do cargo de diretor de Luís de Barros e do adjunto José Saramago do DN. Com este desfecho, o caso do saneamento dos jornalistas do ‘Diário de Notícias’ acaba por ser fechado com o reconhecimento pelo Conselho de Imprensa de que a ação foi ilegal, o que permitiu o regresso dos jornalistas saneados.

Face a esta nova situação política, as administrações e direções dos órgãos de comunicação social do Estado, vão passar a orientar-se mais no sentido dos partidos mais moderados, como o PS e o PSD. Todavia, as repercussões do dia 25 de novembro não acabam nas alterações dos órgãos sob a alçada do Estado. Ao nível da iniciativa privada vão surgir novos jornais, com destaque para ‘O Diabo’ e o ‘Jornal Novo’, este ligado à confederação da indústria.

 

 

A.M. Santos Nabo

 

Notas:


[i] Decreto-Lei n.º 22469, de 11 de abril de 1933

[ii] PINTO, José Filipe, ‘Segredos do Impérios da Ilusitânia’, Coimbra, Almedina, 2011

[iii] ABREU, Dinis de (Coord), ‘Palavras no Tempo’, s/l, INCM, 1990

[iv] PINHEIRO, Miguel, ‘Sá Carneiro – Biografia’, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010

[v] BALSEMÃO, Francisco, ‘Memórias’, Lisboa, Porto Editora, 2021

[vi] PINTO, Jaime Nogueira, ‘Portugal os Anos do Fim’, Alfragide

[vii] PEREIRA, José Pacheco, ‘As Armas de Papel’, Lisboa, Temas e Debates, 2013

[viii] WHELLER Douglas (Org), ‘Em Busca do Portugal Contemporâneo’, Lisboa, Tinta da China,2023

[ix] MESQUITA, Mário, ’25 de Abril: A Transformação nos «Media»’, Lisboa, Tinta da China, 2024

[x] PIRES, José, ‘E agora José?’, Lisboa, Moraes Editores, 1977

[xi] CERVELLÓ, Josep Sánchez, ‘A Revolução Portuguesa e a Sua Influência na Transição Espanhola’, Lisboa, Assírio e Alvim, 1993

[xii] CABRERA, Ana (Org), ‘Jornais, Jornalistas e Jornalismo’, Lisboa, Livros Horizonte, 2011

[xiii] REIS, António (Coord), ‘Portugal 20 Anos de Democracia’, s/l, Círculo de Leitores, 1994

[xiv] PINTO, José Filipe, ‘Segredos do Império da Ilusitânia’ Coimbra, Almedina, 2011

[xv] CASTAÑO, David, ‘Mário Soares e a Revolução’, Alfragide, Dom Quixote, 2012

[xvi] REZOLA, Maria Inácia (Coord), ‘A Revolução nos Média’, Lisboa, Tinta da China, 2014

[xvii] VIEIRA, Joaquim, ‘José Saramago – Rota de Vida’, Lisboa, Livros Horizonte, 2018

[xviii] GOMES, Pedro Marques, ‘Os Saneamentos Políticos no Diário de Notícias’, Lisboa, Aletheia, 2014

[xix] MESQUITA, Mário, ’25 de Abril: A Transformação nos «Media»’, Lisboa, Tinta da China, 2024

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